2017 - 01 - 27
Revista Brasileira da Advocacia
2016
RBA VOL.1 (ABRIL - JUNHO 2016)
DOUTRINA
EM DESTAQUE
2. “PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA” VI ENCONTRO AASP
2. ““ Presunção de inocência”” VI Encontro AASP
Aula magna do Min. Antonio Cezar Peluso
(Autor)
ANTONIO CEZAR PELUSO
peluso@peluso.adv.br
Área do Direito: Constitucional
peluso@peluso.adv.br
Dr. Leonardo Sica, presidente da AASP, Dr. Fábio Prieto, presidente do Tribunal Regional de São
Paulo, nosso Prefeito Municipal, Dr. Paulo Alexandre Barbosa, que acabou de nos deixar, e em cujas
pessoas quero, apenas por economia, saudar todas as autoridades presentes, os componentes da
mesa, os mandatários dos órgãos representativos da advocacia, os senhores magistrados, as
senhoras advogadas, os senhores advogados.
Senhoras e senhores, é uma honra muito grande estar presente neste VI Encontro Anual da
Associação dos Advogados, e estou duplamente feliz, porque voltar a Santos para mim é sempre uma
festa. Sou um santista, não como torcedor, mas como cidadão por adesão voluntária e por título que
me outorgou a Câmara Municipal, e, em particular, porque foi aqui que, além de ter cursado a
Faculdade Católica de Direito, comecei minha carreira profissional como aprendiz de advogado com
duas pessoas que não posso deixar de nominar e que são os velhos advogados e queridos amigos Dr.
Luiz Antunes Caetano e Dr. Mauricio Asnis, em cujas pessoas saúdo todos os advogados de Santos
presentes, entre os quais muitos meus contemporâneos da velha Casa Amarela.
E não menos feliz, pelo fato de me terem concedido a honra de abrir este VI Encontro Anual para
falar de um tema que, sobre ser objeto da preocupação permanente da cidadania, tem hoje viva
atualidade, por força de eventos que estão na ordem do dia. Refiro-me à chamada presunção da
inocência.
1. Bem, nosso tema é seriíssimo, como todos sabem. Eu até preferia, digo sempre, falar sobre ele aos
leigos, divulgando-o, porque os advogados são capazes de compreender todas as minhas
preocupações, até porque muitos participam dessas preocupações a respeito do princípio, cuja
compreensão é introduzida por uma indagação: em que condição se encontra, no seu curso, o réu de
um processo penal? O que ele é aí? É suspeito? Culpado? Inocente? Afinal, qual sua condição
jurídica?
Em torno dessa ambiguidade, ou perplexidade, é que gira a temática do princípio da chamada
presunção de inocência, que, em última instância, traduz, na tentativa de dar racionalidade ao ius
puniendi, manifestação exemplar do conflito clássico entre autoridade e liberdade, entre Estado e
cidadão, e cuja arqueologia nos ajuda a entender, não apenas o conceito, mas sobretudo o alcance,
nem sempre bem entendido na sua inteireza, deste princípio capital.
E, nessa arqueologia, isto é, na reconstituição histórica da sua evolução, não podemos deixar de
lembrar três momentos importantes sempre relevados pelos estudiosos. O primeiro deles é marcado
pela disposição do art. 9, IX, da Declaração do Homem e do Cidadão, da Revolução de 1789, e que, em
larga medida, foi, na esteira do movimento reformista da jurisdição penal, inspirada pelo
iluminismo e pela mais famosa obra de um dos grandes teóricos da dogmática penal, o qual
escreveu um pequeno livro - no tempo em que se escrevia pouco para dizer muito -, conhecido de
todos, Dei Delitti e Delle Pene. Falo de Cesare Bonesana Beccaria, ou Marquês de Beccaria. A
importância da obra pode ser sentida ao fato de, datada de 1764, ter sido, já em 1766, traduzida para
o francês, em seguida para outras línguas, de modo que seus pensamentos, sintetizando o ideário
iluminista de rebelião contra as opressões da concepção de um processo imperial no sentido estrito
da palavra, se difundem com surpreendente rapidez, a ponto de repercutir na Rússia, cuja
imperatriz Caterina II o convida, nesse época, a visitar Moscou para supervisionar projeto do seu
sistema penal. Beccaria recusou-o, é verdade, mas o convite em si é muito significativo da
importância de sua obra.
A disposição desse art. 9.º, de cujo texto advém o nome histórico pelo qual passou a ser divulgado o
princípio, ou mais precisamente, entre nós, a regra constitucional, começa com o seguinte
enunciado: "Tout homme étant présumé innocent, ..." Sem transcrevê-la toda, dispõe, em tradução
larga, que, como todo homem se presume inocente até que seja declarado culpado, se antes for
preciso agir contra ele, as medidas que devam ser tomadas não podem ser excessivas, senão que os
excessos devem ser reprimidos severamente pela lei.
O que significou essa norma importante da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão?
Significou a assunção, pela legislação revolucionária, de uma das relevantes ideias que Beccaria
sintetizou naquele pequeno livro, como reação contra as arbitrariedades do uso do processo penal
pelo soberano, e que eram admitidas pela lei, suposto não legítimas, tais como torturas, suplícios,
como meios de obtenção de provas, admissão de meia culpa, prisões para averiguação sem prazo,
sem limite, nem controle algum. Eram tão abusivas, que, em 1760, Luis XVI baixou decreto que
extinguiu as torturas e os suplícios como meios de obtenção de prova, exceto para os casos em que o
réu fosse acusado de crime contra o rei.
O que expressava o feitio desse processo penal? Um tratamento degradante e desumano do réu,
porque o processo era instrumento do arbítrio e da atuação política do poder real. E Beccaria, como
todos sabemos, pregava exatamente os princípios que hoje estão consagrados no nosso direito penal,
em particular no modelo acusatório do processo penal. Este foi o primeiro momento histórico em
que se manifesta, no plano legislativo, a ideia da presunção de inocência.
O segundo momento é não menos importante e dá-se particularmente na Itália, no entrechoque das
posturas dogmáticas das três conhecidas escolas penais, sobre o objeto e o método do direito penal, e
a primeira das quais era a chamada Escola Clássica, cujo grande idealizador e divulgador foi
Carrara, no seu conhecido Programma, aliás traduzido para o português por Azevedo Franceschini,
que foi juiz presidente do extinto Tribunal Criminal de São Paulo. Tal Escola, que adotava o método
lógico abstrato, pregava, em síntese, o seguinte: o direito penal serve para punir os criminosos, para
punir os culpados. Mas o processo penal, não; o processo penal serve para tutelar o réu inocente,
garantir a liberdade do cidadão. O cerne da Teoria do Processo estava, pois, na sua visão de garantia
da presunção de inocência, sem a qual objetivo último do processo penal estaria comprometido.
Tratava-se, portanto, da concepção liberal do processo penal, ou seja, de sua modelagem ideológica.
Contra essa concepção, e, sobretudo, em decorrência da inquietação social provocada pelos
primeiros problemas de ordem criminal trazidos pela Revolução Industrial, hoje exasperados no
contexto da chamada sociedade de risco e nas reações do direito penal do inimigo, surge outra
escola, que, como resposta do positivismo àqueles incipientes reclamos sociais, sustentava devesse a
concepção do processo penal dar prevalência à defesa social, à defesa da sociedade contra os
criminosos.
Suas formulações guardavam algumas particularidades que é mister recordar: primeiro, baseava-se,
vamos dizer assim, numa motivação nacionalista, mas, em especial, na crença de determinismo
biológico, e cujo grande expoente foi outro Cesare, o Lombroso, que, em 1876, publica livro que teve
grande repercussão, mas que hoje seria objeto de riso, porque, como os senhores sabem, entre
outras coisas, professava que certas pessoas nascem com tendência irreprimível de criminalidade,
isto é, apresentariam gens criminogênicos, supostamente perceptíveis em algumas variáveis
biológicas, como, por exemplo, esta: se a extensão dos braços abertos fosse maior que a altura da
pessoa, isso constituiria indício certo de um criminoso nato, que evidentemente não podia contar
com a proteção de uma presunção de inocência contra os interesses da defesa do Estado.
E Enrico Ferri, que foi um dos arautos dessa teoria, chega, por exemplo, a fazer afirmações não
menos extremadas, ou absolutas, como a de que não se poderia presumir inocente a um réu que
confessasse o crime. E foi dele a proposta, adotada por influência do Código de Processo Penal
Italiano de 1931, do que constava da redação original do art. 386, VI, e hoje consta do inc. VII, do
nosso Código de Processo Penal, que distinguia um tipo de sentença absolutória baseada no quê? Na
insuficiência de prova, como se isso alterasse o fato de que a decisão do juiz, nesse caso, declara, sem
ressalva e para todos os efeitos, que o réu é inocente.
Ao lado dessa Escola, outra aparece, a técnico-jurídica, que, usando metodologia idêntica, baseada
também no raciocínio indutivo, se inicia com famosa aula magna proferida por Arturo Rocco,
criminalista, irmão do Alfredo - o civilista e professor de direito comercial -, em 1905, na Faculdade
de Direito de Sassari, onde lança a base do chamado caráter técnico que devia ditar uma concepção
de pureza do direito criminal, centrado nos textos da lei, perante a qual os direitos sociais tinham
que prevalecer na qualificação da condição do réu e na questão da prova da culpa, porque, dizia ele,
o réu não é nem inocente, nem culpado; o réu apresentaria uma condição intermediária no curso do
processo, a qual seria absolutamente incompatível com um princípio ou regra que lhe reconhecesse
presunção de inocência.
Essa Escola foi, sobretudo, capitaneada por um homem importantíssimo na história do direito penal
e do processo penal, mas também do ponto de vista político, Vincenzo Manzini, que escreveu o
relatório ministerial do projeto preliminar do Código de Processo Penal e no qual afirma que a regra
da presunção de inocência era desajeitadamente irracional e contraditória (goffamente paradossale e
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