partir dos estudos pioneiros de William Matthew Flinders Petrie (1853-1942), com
base em suas escavações e na tipologia cerâmica. Em uma atual divisão cronológica
temos a seguinte sequência: Pré-Dinástico Inicial (c. 5500-3800 a.C.) – Fayum,
Merimde, Tarsiano/Badariano; Pré-Dinástico Médio (c. 3900-3600 a.C.) – Amrantiano/
Naqada I; Pré-Dinástico Tardio (c. 3600-3300 a.C.) – Gerzeano/ Naqada II; e
Protodinástico (c. 3300-3100 a.C.) – início dos reinos regionais, Dinastia “0”
(CASTILLOS, 2002, 07).
Para os egípcios antigos da época faraônica tal organização era desconhecida e
pareceria estranha, visto que a sua contagem do tempo, conforme explicaremos mais
adiante, era feita com base nos reinados dos faraós, não sendo esta a forma mais
simples para o estabelecimento de uma cronologia exata em termos ocidentais atuais.
4
Na constituição das dinastias Manethon não levou em conta o aspecto consanguíneo de forma direta,
baseando-se principalmente na possibilidade de agrupar os faraós que tinham uma cidade em comum
sob diversos aspectos: como capital dos reinados, local de origem ou de inumação (QUIRKE, 1990, 06).
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Desta forma, neste artigo discutimos algumas questões que envolvem o
estabelecimento de uma cronologia para o Egito antigo, baseada em documentos
produzidos por esta sociedade e que podem ser utilizados para tal fim.
O TEMPO NO EGITO ANTIGO
Ao tentarmos definir o que é o tempo poderíamos percorrer um caminho que nos
levaria a diversas disciplinas. O termo poderia ser referenciado por meio de uma
fórmula matemática, tal como nas ciências exatas, a exemplo da física, ou tratado
como algo mais abstrato, conforme o que encontramos no campo das ciências
humanas. De uma maneira mais simples o tempo pode ser descrito como uma espécie
de “receptáculo” onde determinados eventos se desenvolvem. Assim, tal como na
modernidade, onde encontramos diferentes concepções e definições, na antiguidade o
tempo era percebido de uma maneira plural. Em comum os povos de língua semítica
têm o fato de perceber o espaço antes do tempo, conforme aponta Ciro Cardoso:
As línguas mais antigas que nos deixaram documentos – o
sumério, o egípcio, o acádio e outros idiomas semíticos antigos
– tendem a espacializar o tempo. O egípcio tardou bastante
até mesmo a desenvolver um sistema verbal baseado na noção
de tempo: de início, predominava em forma absoluta a noção
de aspecto verbal, que distinguia o perfectivo (ações
completas), o imperfectivo (ações em ato ou reiteradas) e o
prospectivo (ações que são suscetíveis de vir a ocorrer).
(CARDOSO, 1998, 07)
Para os egípcios a concepção do tempo era baseada em um termo, eternidade,
que possuía duas formas de grafia, “neheh” e “djet”, o que denota, claramente, uma
diferença em seu significado. Tais designações de eternidade foram associadas, sob o
ponto de vista mítico, a duas divindades: Ra e Osíris. Ambos os deuses sintetizavam
uma dualidade, uma complementaridade e algo que era infinito. A primeira forma,
neheh, estava associada a Ra e a segunda, djed, estava relacionava a Osíris. De acordo
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com a forma de pensamento egípcio o mundo em que eles viviam era desprovido de
barreiras e tudo o que existia era complementar, assim a oposição binária é
frequentemente
encontrada,
a
exemplo
do
masculino/feminino,
do
animado/inanimado, assim por diante. Seguindo esta forma de pensamento a
existência de duas eternidades pode ser facilmente compreendida, pois ambas são
também complementares. Neheh simboliza o percurso contínuo do sol que nasce no
leste e segue para o oeste, conforme é mencionado em uma inscrição da Naos de
Ismailia: “ A eternidade-neheh é o caminho de seu pai Ra” (TRAUNECKER, 1995, 52).
Esta forma de eternidade é, portanto, cíclica e descontínua, o que explicaria as
repetições infindáveis, como a subida e a descida das águas do Nilo que regia as
estações, as fases da lua no seu ciclo de 28 dias e a ocorrência de festivais aos deuses
(CARDOSO, 2000, 54). Este tempo cíclico estava presente na vida dos camponeses e se
manifestava tanto nas tarefas de seu cotidiano quanto na posição que tais indivíduos
ocupavam na sociedade (CAMPAGNO, 2011, 31).
A eternidade djet representa a permanência do tempo de forma linear
contínua, tal como o deus Osíris, cujo epíteto era heka djet, ou “governante da
eternidade”. Segundo José Carreira (1994, 65) “ a eternidade djet é criação cultural
egípcia e traduz a ânsia de conseguir e, sobretudo, de conservar um resultado”. Isto
explica o investimento dos egípcios em criarem uma tumba que pudesse durar para
sempre, da mesma forma que conservar os cadáveres por meio do embalsamamento
era condição sine qua non para garantir-lhes a permanência que foi adquirida por
Osíris. Mais ainda, tal eternidade se manifestava na projeção de uma memória dos
antepassados, algo que é contínuo e duradouro, a exemplo de uma linhagem familiar,
seja ela de origem régia ou não (CAMPAGNO, 2011, 31). Ambas as formas de
eternidade eram perfeitamente integradas, pois enquanto a djet constituía a
permanência do existente, a neheh assegurava o seu funcionamento (TRAUNECKER,
1995, 53).
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Este tempo composto por estas duas noções de eternidade pertencia aos
deuses e era partilhado pelos mortos, visto que com elas poderiam continuar a vida no
além, conforme esta inscrição que deseja a eles o ingresso no tempo: “ une-te ao
tempo-neheh quando ele nasce como sol da manhã; e ao tempo-djet quando se põe
como sol do entardecer” (TRAUNECKER, 1995, 64). Com os vivos a situação era um
pouco diferente, visto que seu próprio tempo dependia da vontade das divindades,
sendo estas responsáveis pelo acréscimo ou diminuição daquele, como nos indica uma
fórmula em uma carta Raméssida: “ De fato eu estou vivo hoje; amanhã está nas mãos
do deus”
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. Duas palavras expressam bem como os egípcios entendiam a sua existência
temporal terrena: a primeira delas é at, que significa “momento”, “instante” ou o
“tempo” (FAULKNER, 1976, 48) em geral de um acontecimento, e a segunda é ahau,
que pode ser traduzida como “período” ou “espaço de tempo” (FAULKNER, 1976, 01).
Esta palavra é utilizada na expressão “ ahau ne ankh” que se traduz como “tempo de
vida”. Trata-se da existência terrena de um indivíduo no Egito antigo que, segundo as
fontes escritas, era de 110 anos. Esta idade é reconhecida por meio de muitos
documentos, a exemplo do poema do Reino Novo onde um pupilo faz uma dedicatória
ao seu mestre:
Possas tu multiplicar anos felizes, teus meses de prosperidade,
teus dias da vida e bem estar, tuas horas em saúde, teus
deuses estando satisfeitos contigo; que eles se contentem com
tuas declarações, e que um belo Ocidente tenha sido enviado
para ti. Tu ainda não és velho, tu não estás doente. Que tu
possas completar 110 anos sobre a terra, com teus membros
vigorosos, como acontece a alguém que é elogiado como tu
quando o teu deus o favorece. (JANSSEN & JANSSEN, 1996,
67).
Esta expectativa de vida ideal para os egípcios, que era bem diferente de sua
realidade, pois as pessoas dificilmente ultrapassavam os quarenta e cinco anos, está
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Conforme nossa tradução da carta escrita por Djehutymes, Papiro Leiden I, 369. Edição hieroglífica em:
ČERNÝ, 1939, 01-02.
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relacionada à ideia de um ciclo, algo que começava com o nascimento, passava pelo
crescimento, pela maturidade, pela velhice e chegava à morte. Tal processo era rápido,
mas o fim de uma existência nada mais era do que o término de um ciclo vital que, na
visão dos egípcios antigos, seria uma espécie de limite para o início de uma nova vida,
sendo assim necessário morrer para poder renascer (SANTOS, 2012, 28).
De maneira similar, este ciclo, claramente relacionado à eternidade- neheh,
deve ter influenciado a forma de contar o tempo para os egípcios, que era feita por
meio do reinado de cada faraó. O exemplo visto na figura 1, tirado de uma estela da XII
dinastia, nº 583 do Museu Britânico, apresenta uma data relacionada ao ano 19 de
Amenemhat II.
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