Alimentação e Cultura
A diversidade de abóboras no Brasil e sua relação histórica com a cultura
Publicado em Quinta, 01 Março 2012 10:38
Escrito por Rosa Lía Barbieri
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O Brasil, originalmente, era habitado por diversas nações indígenas.
Navegadores portugueses chegaram às terras brasileiras no ano de 1500,
quando este território passou a se constituir em uma das colônias de
Portugal. Os portugueses trouxeram escravos da África, já no século XVI.
No século XIX, o país tornou-se independente de Portugal e, pouco
depois, aboliu a escravatura. Ainda nesse século, chegou ao país um
grande número de imigrantes, especialmente alemães e italianos. Mais
tarde, vieram também imigrantes de outras partes do mundo, com
destaque para japoneses, chineses, poloneses e russos. Cada etnia trouxe consigo sua cultura, valores, culinária e,
muitas vezes, sementes de variedades de cereais, hortaliças, frutas, forrageiras, condimentos e plantas medicinais.
Acompanhando as sementes, vinha também o conhecimento necessário para o plantio, cultivo, colheita,
armazenamento e uso dos produtos. A confluência de diferentes etnias resultou na diversidade do povo brasileiro,
de sua religiosidade e, também, em uma culinária diferenciada, marcada, em cada região do país, por uma forte
correlação com a história de ocupação local e com a origem de seus habitantes.
Desse modo, ainda hoje, são cultivadas no Brasil muitas variedades
crioulas, de um grande número de espécies – sejam espécies nativas,
como a mandioca (Manihot esculenta), ou espécies não nativas, como é o
caso da cebola (Onion cepa), que veio com os portugueses. São
denominadas de variedades crioulas aquelas variedades que foram
desenvolvidas pelos próprios agricultores, resultantes da seleção de
plantas por eles realizada ao longo do tempo, cujas sementes são
passadas de geração a geração e também trocadas entre vizinhos e
parentes. Um caso que merece destaque é o das variedades crioulas de abóboras, por sua diversidade e pelo
manejo realizado pelos agricultores.
As abóboras pertencem ao gênero Cucurbita (família Cucurbitaceae), que
compreende várias espécies silvestres e domesticadas nativas das
Américas. Cinco espécies de Cucurbita foram domesticadas há milhares
de anos e compreendem as hortaliças conhecidas como abóboras,
morangas, gilas, mogangos e abóboras ornamentais: Cucurbita maxima,
Cucurbita moschata, Cucurbita ficifolia, Cucurbita argyrosperma e
Cucurbita pepo.
Quando os primeiros navegadores portugueses desembarcaram em
terras brasileiras, há cinco séculos, os indígenas cultivavam suas próprias variedades de abóboras. Naquela
época, elas eram o terceiro produto agrícola em ordem de importância para os indígenas, sendo suplantadas
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apenas pela mandioca e pelo milho. As abóboras cultivadas pelos índios brasileiros foram levadas para a Europa
pelos portugueses, enquanto que os espanhóis, que colonizaram outros países das Américas, levaram para lá as
variedades de abóboras cultivadas pelos astecas, maias e incas. As abóboras fizeram sucesso e circularam
rapidamente entre os diferentes países do Velho Mundo, chegando à Alemanha e à Itália ainda no século XVI.
Quando os imigrantes alemães e italianos vieram ao Brasil, no século XIX, trouxeram consigo sementes de suas
próprias seleções de abóboras, para seguir cultivando no Brasil aquelas que já haviam sido incorporadas à sua
cultura havia três séculos.
Assim, atualmente, existe no Brasil o seguinte cenário: alguns agricultores
ainda mantém suas variedades crioulas de abóboras, realizando seleção
recorrente para os tipos de frutos que mais lhe agradam, de acordo com
suas preferências pessoais, ditadas por sua cultura. Um pequeno número
desses agricultores tem papel de destaque nessa dinâmica de
conservação in situ / on farm, atuando como guardiões dessas sementes,
que são passadas de geração a geração e são objeto de trocas entre
parentes e vizinhos. O maior número de variedades crioulas em cultivo no
país é das espécies Cucurbita maxima e Cucurbita moschata. A primeira apresenta grande variabilidade genética
para características morfológicas externas do fruto, como tamanho, formato, cor e textura da casca, o que resulta
em uma diversidade de nomes atribuídos para cada tipo, como abobrinha, abóbora, abóbora-crioula, abóbora-
cogumelo, abóbora-coração-de-boi, abóbora-gaúcha, moranga e moranga-de-bunda, entre outros. Já os frutos de
Cucurbita moschata, conhecidos popularmente como abóbora-de-pescoço, moranga ou abóbora-menina,
representam uma importante reserva de alimento para animais domésticos (principalmente suínos e bovinos), além
de serem bastante utilizados no preparo de doces – em calda e em pasta – e também de pratos salgados
(quibebe, sopas e cozidos).
A maior diversidade de Cucurbita em cultivo no país é mantida pelos agricultores da Região Sul, onde podem ser
encontradas as cinco espécies domesticadas de Cucurbita, como resultado do processo histórico de colonização.
Nesse contexto, agricultores descendentes de portugueses mantêm variedades crioulas de Cucurbita pepo, cujos
frutos de casca bastante dura e polpa fibrosa, denominados mogangos, são apreciados no preparo de "mogango
caramelado" e também em pratos salgados. Em número bem menor, alguns descendentes de portugueses no Sul
do país também mantêm variedades crioulas de gila (Cucurbita ficifolia), com frutos de casca extremamente dura
e com polpa branca e muito fibrosa, utilizados no preparo de um doce típico português, denominado "doce de gila",
cuja textura é semelhante ao doce de fios-de-ovos, mas com coloração branca e sabor característico.
Os afrodescendentes, particularmente em comunidades negras rurais,
têm suas próprias variedades crioulas, com destaque para os mogangos
(Cucurbita pepo). Eles também mantêm variedades crioulas de Cucurbita
maxima e de Cucurbita moschata. Os descendentes de imigrantes
alemães, além de Cucurbita maxima e de Cucurbita moschata, mantêm
variedades ornamentais de Cucurbita pepo, algumas com frutos
comestíveis e outras não adequadas para o consumo, devido ao amargor
da polpa. Com cores intensas e bastante variadas, além de formas
bastante diversas (periformes, ovais, discóides, redondos, estrelados), os frutos são usados na decoração de
residências. De formato periforme, os chamados poronguinhos ornamentais não são comestíveis, apresentam
grande variabilidade e podem ser utilizados em decoração, com grande durabilidade pós-colheita. Quando
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apresentam formato estrelado, recebem os nomes de abóbora-estrela, abóbora-teta-de-égua ou abóbora-
dez-mandamentos, sendo utilizadas no preparo de doces, com ou sem adição de coco ralado. Por sua vez, os
descendentes de imigrantes italianos no Sul do país dão preferência a variedades crioulas de Cucurbita maxima
com frutos achatados de polpa bastante consistente e coloração alaranjada, os quais são usados para o preparo
do recheio de tortei, prato típico da culinária italiana; e de Cucurbita moschata, com frutos grandes de pescoço,
para fazer doces em cubos e em pasta.
Essas variedades crioulas de abóboras são parte de manifestações culturais: desde o nome a elas atribuído até
seu preparo, como componentes de diferentes pratos tradicionais, ou por meio de outros usos, como ornamental,
por exemplo.
Durante muito tempo, a perpetuação dessas variedades coube
unicamente ao esforço de agricultores familiares em propagar e cultivar
suas sementes, cuja origem está intrinsecamente ligada com a história
das famílias. Porém, as variedades crioulas de abóboras cultivadas no
Brasil vêm sofrendo perdas significativas nas últimas três décadas, devido
à substituição por variedades híbridas e também pelo abandono do
cultivo, causado muitas vezes pelo êxodo rural – particularmente o juvenil
– e pela expansão urbana. Essas variedades crioulas constituem um
importante patrimônio genético e cultural da agricultura familiar – e do Brasil –, que não pode ser perdido,
merecendo maior valorização no cenário nacional.