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A abóboda
Alexandre Herculano
Em: HERCULANO, Alexandre – Lendas e narrativas
A abóboda
Educação Literária
CNL 2017
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CAPÍTULO I – O cego
O dia 6 de Janeiro do ano da Redenção 1401 tinha
amanhecido puro e sem nuvens: os campos,
cobertos aqui de relva, acolá de searas, que
cresciam a olhos vistos com o calor benéfico do sol,
verdejavam ao longe, ricos de futuro para o
pegureiro e para o lavrador. Era um destes
formosíssimos dias de inverno, mais gratos que os
do estio, porque são de esperança, e a esperança
vale mais do que a realidade; destes dias, que Deus
só concedeu aos países do ocidente, em que os
raios do sol, que começa a subir na eclítica,
estirando-se vívidos e trémulos por cima da terra,
enegrecida pela humidade, errando por entre os
troncos pardos dos arvoredos, despidos pelas
geadas, se assemelham a um bando de crianças no
primeiro viço da vida a folgar e a rolar-se por cima
da campa, sobre a qual há muito sussurrou o último
ai da saudade, e que invadiram os musgos e
abrolhos do esquecimento.
Era um destes dias antipáticos aos poetas ossiânico-
regelo-nevoentos, que querem fazer-nos aceitar
como coisa mui poética esses gelos do norte, esses
brilhantes caramelos dos topos das montanhas,
sem se lembrarem de que
Do sol do meio-dia aos raios vividos,
Parvos!—se lhes derretem: a brancura
Perdem co'a nitidez, e se convertem
De lúcidos cristais em agua chilre;
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destes dias, enfim, em que a natureza sorri como a furto,
rasgando o denso véu da estação das tempestades.
No adro do mosteiro de Santa Maria da Vitória,
vulgarmente chamado da Batalha, fervia o povo entrando
para a nova igreja, que de mui pouco tempo servia para
as solenidades religiosas. Os frades dominicanos, a quem
el-rei D. João I tinha doado esse magnífico mosteiro,
cantavam a missa do dia debaixo daquelas altas
abóbadas, onde repercutiam os sons do órgão, e os ecos
das vozes do celebrante, que entoava os kyries.
Mas não era por ouvir a missa conventual que o povo se
escoava pelo profundo portal do templo para dentro do
recinto sonoro daquela maravilhosa fábrica: era por
assistir ao auto da adoração dos reis, que com grande
pompa se havia de celebrar nessa tarde dentro da igreja,
e diante do rico presépio que os frades tinham levantado
junto ao arco da capela do fundador então apenas
começada. A concorrência era grande, porque os
habitantes da Canoeira, d'Aljubarrota, de Porto-de-Mós e
dos mais lugares vizinhos, desejosos de ver tão curioso
espetáculo, tinham deixado desertas as povoações para
vir povoar por algumas horas o ermo do mosteiro.
Aprazível coisa era o ver, descendo dos outeiros para o
vale por sendas torcidas, aquelas multidões, vestidas de
cores alegres, e semelhantes no seu todo a serpentes
imensas, que, transpondo as assomadas, se rolassem
pelas encostas abaixo,
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refletindo ao longe as cores variadas da pele luzidia e
lúbrica. Atravessando a planície, em que avultava o
mosteiro, passava o rio Lena, cuja corrente tinham
tornado caudal as chuvas da primeira metade da estação
invernosa.
No campo contíguo ao edifício, aqui e acolá,
alevantavam-se casarias irregulares, algumas fechadas
com suas portas, outras apenas cobertas de madeira, e
abertas para todos os lados, a maneira de simples
telheiros: as casas fechadas e reparadas contra as injúrias
do tempo eram as moradas dos mestres e artífices que
trabalhavam no edifício: debaixo dos telheiros viam-se,
n'uns pedras só desbastadas, n'outros algumas onde se
começavam a divisar lavores, n'outros, enfim, pedaços de
cantaria, em que os mais hábeis escultores e
entalhadores já tinham estampado os primores dos seus
delicados cinzéis. Mas o que punha espanto era a
inumerável porção de pedras, lavradas, polidas, e prontas
para serem colocadas em seus lugares, que jaziam
espalhadas pelo grandíssimo terreiro, que ao redor do
edifício se alargava para todos os lados: mainéis
rendados, pecas dos fustes, capitéis góticos, lacarias de
bandeiras, cordões de arcadas, aí estavam tombados
sobre grossas zorras, ou ainda no chão endurecido pelo
contínuo perpassar de trabalhadores, oficiais, e mais
obreiros desta maravilhosa máquina. Quem de longe
olhasse para aquele extenso campo, alastrado de tantos
primores de escultura, julgara ver o assento de uma
cidade antiquíssima, arrasada pela mão dos homens ou
dos séculos, de que só restara em pé
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um monumento, o mosteiro. E todavia, esses que
pareciam restos de uma antiga Balbek não eram senão
algumas pedras que faltavam para o acabamento d'um
convento de frades dominicanos, o convento de Santa
Maria da Vitória, vulgarmente chamado a Batalha!
Um quadrante de pedra, assentado em um canto do adro,
apontava meio-dia. A igreja tinha sorvido dentro do seu
seio desmesurado os habitantes das próximas povoações,
e de todo o ruído e algazarra que poucas horas antes
soava por aqueles contornos, apenas traspassavam pelas
frestas e portas do templo os sons do órgão, soltando a
espaços suas melodias, que sussurravam e morriam ao
longe, suaves como um pensamento do céu.
Não estava, porém, inteiramente ermo o terreiro da
frontaria do edifício. Assentado sobre um troco de fuste,
com os pés ao sol, e o resto do corpo resguardado de
seus raios ardentes pela sombra de um telheiro, a qual se
começava a prolongar para o lado do oriente, via-se um
velho, venerável de aspeto, que parecia embebido em
profundas meditações: pendia-lhe sobre o peito uma
comprida barba branca: tinha na cabeça uma touca
foteada, um gibão escuro vestido, e sobre ele uma capa
curta ao modo antigo. A luz dos olhos tinha-lha de todo
apagado a velhice; mas as suas feições revelavam que
dentro daqueles membros trémulos e enrugados morava
um ânimo rico de alto imaginar: as faces do velho eram
fundas, as maçãs do rosto elevadas, a fronte espaçosa e
curva, e o perfil do
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rosto quase perpendicular. Tinha a testa enrugada como
quem vivera vida de contínuo pensar, e correndo com a
mão os lavores de pedra, sobre que estava assentado, ora
carregando o sobrolho, ora deslisando as rugas da fronte,
repreendia ou aprovava com eloquência muda os
primores ou as imperfeições do artífice, que copiara a
ponta de cinzel aquela página do imenso livro de pedra, a
que os espíritos vulgares chamam simplesmente o
mosteiro da Batalha.
Enquanto o velho cismava sozinho, e palpava o canto
subtilmente lavrado, sobre que repousava os membros
entorpecidos, a portaria do mosteiro, que perto d'ali
ficava, outras figuras e outra cena se viam. Dois frades
estavam em pé no limiar da porta, e altercavam em voz
alta: de vez em quando, pondo-se nos bicos dos pés, e
estendendo os pescoços, parecia quererem descobrir no
horizonte, que as cumeadas dos montes fechavam, algum
objeto: depois de assim olharem um pedaço, encolhiam
os pescoços, e voltando-se um para o outro, travavam de
novo renhida disputa, que levava seus visos de não
acabar.
"Ó homem!—dizia um dos dois frades, a quem a tez
macilenta e as barbas e cabelos grisalhos davam certo ar
de autoridade sobre o outro, que mostrava nas faces
coradas e cheias, e na cor negra da barba povoada e
revolta, mais vigor de mocidade.—Já disse a vossa
reverência, que el-rei me escreveu de seu próprio punho
que viria assistir ao auto da adoração dos reis, e de
caminho veria a casa do capítulo, a
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que ontem mestre Ouguet mandou tirar os simples que
sustentavam a abóbada."
"E nego eu isso?—replicou o outro frade.—O que digo é
que me parece impossível, que el-rei venha de feito,
conforme a vossa paternidade prometeu em sua carta. Há
muito que lá vai o meio-dia; daqui a pouco tocará a
vésperas e às duas por três è noite. não vedes, padre
mestre, a que horas virá a acabar o auto? E este povo,
este devoto povo que aí está, que aí vem, há de ir com o
escuro por esses descampados e serras com mulheres,
com raparigas..."
"Ta, ta—interrompeu o prior.—Temos luar agora, e vão
de consum. O caso não é esse, padre procurador, o caso é
se está tudo aviado para agasalharmos el-rei e os de sua
companha."
"Ó lá, quanto a isso, nada falta. Desde ontem que tenho
tido tanto descanso como hoste ou cavalgada de
castelhanos diante das lanças do Condestável: o pior é
que, segundo me parece, e dizei o que quiserdes, opus et
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