.
6
Idem item 3.
19
expectativa de vida, 45,8 anos; falta de acesso à água potável, somente 65% da população, e
sistema de saneamento básico
deficiente, apenas 22% dos domicílios atendidos
(FRANCISCO).
Figura 1: O continente africano
Fonte: EducaBras
Os três grupos étnicos que compõem a população de Ruanda são os tutsis, os hutus e os
tuás. Os principais grupos eram os tutsis, povo vindo do norte e do leste, e os hutus,
provenientes do sul e do oeste. Os hutus representam a maioria da população, com cerca de
90%, e os tutsis que, apesar de serem apenas 9% da população, assumiram as funções de
liderança na sociedade por muitos séculos. Os tuás, jamais foram mais que 1% da população,
assim, nunca desempenharam um papel significativo dentro da estrutura social do país, sendo
marginalizados e destituídos de quaisquer direitos. A distinção entre os elementos de um
grupo e de outro estava basicamente ligada às funções sociais exercidas por cada um, como
descrito por FONSECA (2016, p.226):
Enquanto que tutsis eram majoritariamente pecuaristas, os hutus eram agricultores.
(...) Os já citados tuás eram (e ainda são) uma minoria muito pequena em Ruanda e
ficavam em locais mais periféricos e com práticas sociais mais voláteis, que
envolviam principalmente a caça e a colheita.
Outro ponto importante, é que não havia naquela época uma rivalidade, muito menos
um ódio extremo entre os grupos, que conviviam e se relacionavam de maneira pacífica.
Segundo SANTIAGO (2011), ocorria até mesmo casamentos entre as etnias,
dificultando
ainda mais a diferenciação dos grupos:
20
Em algumas áreas do país surgiram principados independentes hutus, e em outras,
comunidades tutsis e hutus cooperavam sob o controle nominal do rei. Durante o
século XVII, casamentos mistos eram comuns, fazendo com que em muitos casos a
classificação de um indivíduo como membro do povo hutu ou tutsi se tornasse
difícil.
Esta forma de distinção das funções sociais das etnias era usada para definir sua posição
na sociedade. A pecuária, desempenhada pelos tutsis, era considerada atividade nobre, pois o
gado era visto como sagrado, enquanto a agricultura, exercida pelos hutus, era menosprezada.
Dessa forma, os tutsis eram vistos como os possuidores legítimos do poder sobre os hutus,
ajudando a manter a estrutura política e social da região, como mostrado por FONSECA
(2016, p.227):
(...) toda a alta estrutura política de tal sociedade era baseada nos tutsis (com
algumas exceções pontuais) e, principalmente, na figura monárquica do
mwami
7
,
responsável pela manutenção do equilíbrio político e também social de Ruanda.(...)
Essa distinção natural de habilidades e capacidades entre tutsis e hutus também
colaborava com o domínio da monarquia tutsi, que dada as suas características
entendidas como naturais, que envolviam o seu suposto intelecto e a sua diplomacia,
caberia socialmente a este grupo governar e atuar no âmbito político, enquanto que a
rusticidade e brutalidade dos hutus os levavam a serem os trabalhadores braçais da
sociedade ruandesa.
Apesar dessa distinção entre os grupos e esta visão de superioridade, não havia o uso da
força, ou uma repressão física por parte dos tutsis para se manterem no poder. De acordo com
FONSECA (2016, p.227), a organização da sociedade se mantinha mais por uma questão de
práticas costumeiras do que pelo uso da violência física. Para MENDONÇA (2013, p.304) “a
miscigenação sempre foi muito grande, criando-se também uma cultura comum, com língua,
religião e valores políticos e sociais compartilhados”.
O Estado de Ruanda se estabeleceu de fato, por volta do século XVII, quando o
mwami
tutsi Ruganzu Ndori, vindo da atual Tanzânia, adentrou na região e, absorvendo as fracas
organizações hutus existentes, unificou a região, criando o Reino de Ruanda (MENDONÇA,
2013, p.305).
Este equilíbrio se manteve por cerca de sete séculos, até a chegada dos alemães, que
assumiram o controle da região após a Conferência de Berlin (1884 – 1885). Os alemães,
aliados à elite tutsi, estabeleceram o domínio sobre a região,
constituindo postos
administrativos e iniciando um governo indireto. Deste modo, os tutsis mantiveram seus
privilégios, enquanto os hutus passaram a ser cada vez mais inferiorizados.
Com o término da 1ª Guerra Mundial, a Bélgica recebeu da Liga das Nações o controle
administrativo do Burundi e de Ruanda. Os belgas, utilizando-se da diferença étnica entre
7
Mwami é o equivalente a um rei para as populações tribais da região (SANTIAGO, Emerson. Ruanda.
Infoescola).
21
tutsis e hutus, iniciaram um processo de discriminação entre os dois grupos, agora não apenas
baseado na classe social, mas também nas diferenças físicas.
Uma ideia que estava sendo amplamente difundida e aceita na Europa daquela época era
a da “ciência das raças”. A teoria mais aceita sobre os povos da África Central era a de John
Hanning Speke, segundo a qual, a civilização teria se iniciado ali por um povo superior aos
negros nativos (MENDONÇA, 2013, p.306).
Para incentivar essa discriminação, os belgas passaram a distinguir os dois grupos
baseados em suas aparências físicas. Os hutus eram descritos como tendo feições mais rígidas
e arredondadas, pele escura, nariz largos, lábios grandes e mandíbulas quadradas. Os tutsis,
por
outro lado, eram descritos como tendo feições suaves, pele mais clara, nariz, lábios e
queixo finos. Foram até mesmo enviados cientistas pelo governo belga para tirarem medidas
da população, que chegaram a conclusão de que os tutsis possuíam um porte naturalmente
aristocrático.
O processo de deterioração da nação prosseguiu. Os belgas, com o apoio da Igreja
Católica, derrubaram o governo, empossando Rudahigwa
8
, membro da elite tutsi que se
converteu ao catolicismo e foi colocado como novo governante. Com isso, Ruanda logo se
tornou o país com maior índice de católicos da África, devido ao processo de conversão em
massa.
Um censo foi realizado pelos belgas de modo a realizar a distribuição de identidades
étnicas, assim, eles aprimoraram o processo de segregação. Os cargos políticos e
administrativos e o acesso à educação passaram a ser de exclusividade dos tutsis. Esta
estratégia dos colonizadores fez surgir uma ideia de separação entre os dois grupos, motivada
pelas diferenças físicas e pelo entendimento de superioridade racial dos tutsis sobre os hutus,
com estes sendo cada vez mais explorados através da cobrança de tributos e do trabalho
forçado.
A marginalização dos hutus fez surgir dentro deste grupo um sentimento de revolta
contra os tutsis. Com o término da 2ª Guerra Mundial, a atuação da Bélgica na região
passou a
ser supervisionada pela ONU. Além disso, o continente africano estava passando por uma
série de movimentos de independência e o colonialismo estava perdendo forças. Aproveitando
o cenário favorável, os hutus começaram a reivindicar seus direitos e discursar por um
governo da maioria.
8
Após ser batizado adotou o nome Charles-Léon-Pierre, Rudahigwa foi o último
mwami de Ruanda (STEPHEN,
Rwembeho
. The New Times).
22
Em 1959, grupos hutus iniciaram uma revolta que se alastrou pelo país, tendo como um
de seus principais incentivadores o coronel belga Guy Logiest
9
. Em 25 de julho de 1959, o
mwami Rudahigwa veio a falecer quando estava em tratamento médico no Burundi. Com as
acusações de envenenamento e o agravamento das disputas, o coronel Logiest realizou um
golpe de estado e retirou todos os chefes tutsis do poder, colocando hutus em seu lugar. Pouco
depois, com as eleições realizadas, os hutus conquistaram 90% dos cargos públicos mais
importantes, instaurando-se um governo provisório, liderado por Grégoire Kayibanda
10
, e a
revolução dada por encerrada. Então, em 1961, o país foi declarado uma república e, em
1962, alcançou sua autonomia, com Kayibanda sendo declarado presidente. Porém, a
proclamação da república não trouxe paz à Nação. Kayibanda iniciou ações de perseguição
contra os tutsis, o que fez com que centenas de milhares deles se refugiassem nos países
vizinhos e organizassem grupos rebeldes. Esses grupos constantemente realizavam incursões
em Ruanda com o intuito de reaver o poder.
Os conflitos perduraram e intensificaram-se ao longo dos anos. Em 1973, o general hutu
Juvénal Habyarimana, chefe do exército, deu um golpe de estado e, em seguida, solicitou uma
trégua dos ataques hutus contra os tutsis. Contudo, ele criou o Movimento Revolucionário
Nacional para tentar incentivar o desenvolvimento do país e continuou com as cotas para os
tutsis. A partir de 1975, passou a contar com o apoio financeiro e militar da França e da
Bélgica. A situação em Ruanda também afetava seu vizinho Uganda,
que teve seu governo
derrubado pelo exército rebelde, que era composto em grande parte por exilados ruandeses.
O governo de Habyarimana passou a sofrer com as fortes críticas da oposição interna e
com a grave crise econômica que se instauraram no país, além da perda da ajuda externa, que
passou a exigir a democratização do país. Não vendo outra opção, o governo cedeu e
anunciou a criação de um sistema multipartidário, em julho de 1990. Em outubro do mesmo
ano, a Frente Patriótica de Ruanda (FPR), rebeldes exilados em Uganda, invadiu Ruanda e
declarou guerra ao regime. O ataque, de acordo com MENDONÇA (2013, p.311), foi o
pretexto para a oposição, que queria estabelecer um regime totalitário, a lançar suas ações
contra o Estado:
(...) os tutsis do país passaram a ser considerados cúmplices da FPR e os hutus que
não apoiassem o governo foram tidos como traidores. (...) O resultado foi o
9
Coronel belga que comandava a revolução hutu (FRUCTUOZO, Ligia Maria Lario e AMARAL).
10
Político de Ruanda, fundador do Partido do Movimento de Emancipação Hutu (1957). Um dos líderes da luta
dos hutus contra a aristocracia tutsi. Primeiro presidente eleito democraticamente após a independência do país
(1962-1973). Após ser deposto foi condenado à morte, a qual foi substituída por prisão perpétua (Biografías y
vida).
23
assassinato de aproximadamente 350 tutsis e a fuga de cerca de três mil pessoas em
apenas três dias.
Para a elite hutu da época, “o erro cometido em 1959 teria sido permitir que os tutsis
fugissem do país, em vez de exterminá-los. Era chegada a hora de corrigir o equívoco.”
(MENDONÇA, 2013, p.311). Começa assim a disseminação de ideias incitando a violência
contra os tutsis. O principal meio utilizado foi a revista
Kangura, que passou a ser umas das
principais ferramentas de apologia à violência.
Figura 2: Revista
Kangura, que exaltava a etnia hutu
e incentivava o assassinato dos tutsis.
Fonte: Montreal Holocaust Memorial Centre
Uma das edições apresentava os 10 mandamentos hutus, criados por Hassan Ngeze
11
:
1.
Os hutus devem saber que uma esposa tutsi,
onde quer que esteja, está
servindo à tribo tutsi. Em consequência, qualquer hutu que faça o seguinte será
considerado um traidor:
- Ter uma esposa tutsi;
- Ter uma amante tutsi;
- Ter uma secretária ou dependentes tutsis.
2.
Todos os hutus devem saber que nossas filhas hutus são as mais dignas e
mais conscientes de seu papel como mulher, esposa e mãe. Não são as mais belas,
boas secretárias e mais sinceras?
3.
Mulheres hutus, por favor, assistam e ordenem a seus maridos, irmãos e
filhos que estejam em alerta.
11
Hassan Ngeze foi jornalista, fundador e editor-chefe da revista
Kangura, além de ser membro fundador do
partido Coalizão para a Defesa da República, o CDR (VELASCO, Liziane Bainy. Âmbito Jurídico).
24
4.
Todos os hutus devem saber que os tutsis são desonestos nos negócio. Seu
único objetivo é a superioridade étnica. Portanto, todo hutu que faça o seguinte é
um traidor:
- Quem fizer aliança com os tutsis nos negócio;
- Quem investir seu dinheiro ou o dinheiro do Estado em uma empresa tutsi;
- Quem emprestar dinheiro ou alugar a um tutsi;
- Quem prestar favores comerciais aos tutsis (concessão da licença de importação,
empréstimos bancários, ofertas públicas...).
5.
Os postos de estratégia política, administrativa, econômica, militar e de
segurança devem ser reservados aos hutus.
6.
O setor educativo (alunos, estudantes e professores) deve ser de maioria
hutu.
7.
As Forças Armadas de Ruanda devem ser exclusivamente hutus. A
experiência da guerra de 1990 nos ensina esta lição. Nenhum militar deve se casar
com uma mulher tutsi.
8.
Os hutus têm de parar de ter piedade dos tutsis.
9.
Os hutus, onde quer que estejam, devem estar unidos, interdependentes e
devem se preocupar com a sorte de seus irmãos hutus.
- Os hutus,
dentro e fora de Ruanda, devem buscar constantemente amigos e
aliados para a causa hutu, começando por seus irmãos Bantos.
- Têm que se opor constantemente à propaganda tutsi. Os hutus devem se
fortalecer e estar atentos ao seu inimigo comum tutsi.
10. A revolução sócia em 1959, o referendo de 1961, a ideologia dos hutus, devem
ser ensinados a todos os hutus e em todos os níveis. Todo hutu deve difundir
amplamente esta mensagem. Todo hutu que persegue seu irmão hutu é um traidor;
tenha seu irmão lido, difundido e ensinado esta ideologia.
A FPR continuou suas investidas contra o regime, porém, graças à ajuda da França, do
Egito e da África do Sul, todas foram repelidas. Com isso, o governo criou uma nova forma
de combater os rebeldes: a formação de milícias, intituladas
Interahamwe (aqueles que lutam
juntos). As milícias, motivadas pelas informações transmitidas pelos rádios e jornais, que
eram manipuladas pela elite hutu, assassinaram tutsis em algumas cidades. Segundo
MENDONÇA (2013, p.312), a população passou a ser vista como uma arma:
A mobilização popular continuava, e o povo de Ruanda passou a ser considerado
como arma pelos líderes, isto é, todos os hutus teriam de matar todos os tutsis. Era
claramente uma estratégia de controle completo do Estado por parte de uma
oligarquia, que mobilizava a população em seu favor com base numa pretensa
identidade étnica, consubstanciada naquilo que ficou conhecido como “Poder Hutu”.
Com o aumento do número de mortes, a comunidade internacional forçou o governo e a
FPR a assinarem os Acordos de Arusha, segundo os quais garantiam o retorno dos refugiados,
a integração das forças rebeldes ao exército ruandês e o estabelecimento de um governo de
transição composto por representantes de todos os partidos. Habyarimana ficaria apenas com
um poder formal até as eleições e seria criada uma força de paz, a UNAMIR, para fiscalizar o
cumprimento dos acordos.
Contudo, por meio da Rádio Mille Collines (RMLC), lideranças
do Poder Hutu
passaram a acusar Habyarimana de traição, que respondeu com ataque a oposição. Neste
25
interim, aviões franceses descarregavam em Kigale facões produzidos na China, que eram
dados aos membros da população hutu simpatizantes aos ideais do Poder Hutu.
Perante essa crescente instabilidade, o general canadense Roméo Alain Dallaire,
comandante da UNAMIR, avisa ao general Maurice Baril, Assessor Militar da Secretaria
Geral da ONU, sobre iminente perigo de uma guerra civil. Em resposta, a ONU ordena que
Dallaire não interviesse e que apenas informasse as embaixadas da França, da Bélgica e dos
Estados Unidos e ao governo ruandês o que havia descoberto.
Como nada foi realizado para tentar impedir, as ações de mobilização da população
continuaram, com os rádios e jornais prosseguindo na disseminação de mensagens de ódio e
ameaças aos tutsis. Iniciando os preparativos para o genocídio. Com o terreno preparado pelos
líderes da oposição, contando com a adesão em massa da população hutu, só era necessário
um pretexto para desencadear o massacre. Esse pretexto veio em 6 de abril de 1994, quando o
avião que levava Habyarimana juntamente com
o presidente hutu do Burindi, Cyprien
Ntaryamira, foi derrubado perto do aeroporto de Kigali, matando todos os ocupantes. No
mesmo instante, a RTLM acusou a FPR e a UNAMIR do ataque. Naquele momento,
iniciaram-se a caça e o extermínio dos tutsis.
Compartilhe com seus amigos: