tragédia grega era uma forma de arte antinarcisista. Povoava o espírito com
seres inteiros fazendo reivindicações distintas, pedindo-nos para imaginar o
sofrimento de seres distintos em circunstâncias criadas pelo destino e pela
maldade humana. Não temos arte trágica suficiente em nossas vidas.
Há estudos recentes sobre jovens, sobretudo rapazes, nos Estados Unidos
que reforçam a ideia de que o narcisismo é um perigo ao qual devemos ficar
atentos. Os psicólogos Dan Kindlon e Michael Thompson, no
impressionante livro
Raising Cain,
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sobre garotos problemáticos na
adolescência, mostram a quantidade assombrosa de meninos que crescem
como analfabetos emocionais, incapazes de imaginar o sofrimento de outras
pessoas e, por conseguinte, incapazes de captar
plenamente a alteridade
distinta dessas pessoas. Ao mesmo tempo, esses garotos também são
obtusos em relação a seu próprio mundo interior. Não reconhecem o medo e
a falta de controle que, sendo humanos, sentem continuamente, e costumam
canalizá-los para a agressão. Subjugar o outro é uma maneira de não
enfrentar o próprio desamparo. Kindlon e Thompson veem a atuação desse
narcisismo emocional na humilhação de outras crianças. Observam que ele
leva a relações brutas e exploradoras com mulheres, moldando-se por
fantasias masturbatórias de dominação e controle.
O livro mais recente de Kindlon,
Too Much of a Good Thing,
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concentra-se na ligação entre a personalidade narcisista e uma cultura de
acumulação material. Os adolescentes em escolas de elite competem
exibindo roupas de grife, férias em caras estações de esqui, carros de luxo.
Humilham os meninos que não possuem essas coisas. Raramente parecem
entender que a vida pode conter valores de mais respeito pelos outros;
parecem nunca se orgulhar de realizar algum serviço importante de
utilidade pública ou de compromisso com a justiça.
Tais quadros nos contam apenas uma parte da história. É evidente que a
cultura americana também contém valores
religiosos e seculares que
enfatizam o serviço ao próximo, o sacrifício e a filantropia, e que os
cidadãos americanos têm um sólido senso de justiça e de direitos civis,
valores liberais que exigem um senso de valor e dignidade de cada um.
Nossa cultura jurídica e constitucional encarna essas normas.
No entanto, os últimos vinte anos têm presenciado uma grande mudança
nos rumos do narcisismo. A era Reagan marcou o início de uma profunda
transformação na cultura política americana. Invocar a justiça e a equidade
saiu de moda; entrou na moda invocar o interesse próprio e a
competitividade. Hoje, a retórica da Grande Sociedade (e, antes, do New
Deal)
parece distante, esquisita, dificilmente uma linguagem capaz de
mobilizar os americanos. Não porque os seres humanos não podem ser
mobilizados pelo ideal rooseveltiano de direitos econômicos e sociais para
todos e de libertação do medo e da necessidade. E sim porque os cidadãos
dos Estados Unidos se tornaram,
em certa medida, diferentes dos seres
humanos que eram outrora, diferentes nos valores que lhes importam e no
que é capaz de motivá-los. “Pergunte-se se você está em situação melhor
neste ano em comparação ao ano passado”, disse Reagan no final de um de
seus debates com Walter Mondale. E a resposta de Mondale — que o bem-
estar tem muitos componentes, sendo um deles a equanimidade — caiu em
ouvidos moucos. Hoje, para começo de conversa, nenhum assessor
encarregado
de escrever discursos, se quisesse conservar o emprego,
escreveria algo nessa linha.
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A guinada para o narcisismo se destaca não só na política interna, mas
também na política internacional. Os dois partidos são culpados. Grande
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