Burnham possam ser encontrados no equilíbrio
de poder do mundo
tripartite de
1984, no qual o Japão vitorioso de Burnham torna-se a Eurásia;
a Rússia faz as vezes de coração do mundo, controlando a massa terrestre
da Eurásia; e a aliança anglo-americana se transforma em Oceânia, que é o
cenário de
1984.
Esse agrupamento da Grã-Bretanha com os Estados Unidos num único
bloco revelou-se uma profecia certeira ao prever a resistência da Grã-
Bretanha à integração com a massa terrestre da Eurásia e também sua
continuada subserviência aos interesses ianques — o dólar, por exemplo, é a
unidade monetária da Oceânia. Londres ainda é reconhecível como a
Londres do período de austeridade do pós-guerra. Desde o início, com seu
frio e súbito mergulho no sinistro dia de abril em que Winston Smith
comete seu ato decisivo de desobediência, as texturas da vida distópica são
incessantes — os encanamentos defeituosos,
os cigarros que perdem seu
tabaco, a comida horrível —, embora isso talvez não exigisse um grande
esforço de imaginação para alguém que vivenciara a escassez dos tempos
de guerra.
Profecia e prognóstico não são exatamente a mesma coisa, e, no caso de
Orwell, confundir os dois não seria uma boa ideia nem para o leitor nem
para o autor. Há um jogo que alguns críticos
gostam de jogar, que
proporciona talvez um minuto e meio de diversão, no qual se faz uma lista
do que Orwell “acertou” e “errou”. Olhando à nossa volta neste momento,
por exemplo, notamos a popularidade do uso de helicópteros como um
recurso de “imposição da lei”, algo que nos é familiar pelas incontáveis
séries policiais televisivas, elas próprias formas de controle social — e,
nesse sentido, da própria ubiquidade da televisão. A teletela de dois lados
guarda certa semelhança com as telas planas de plasma conectadas a
sistemas a cabo “interativos”, que já existem em 2003. As notícias são o
que o governo diz que são, a vigilância de cidadãos
comuns entrou na rotina
da atividade policial, operações razoáveis de busca e apreensão constituem
uma piada. E assim vai. “Uau, o governo se transformou no Grande Irmão,
do jeito que Orwell previu!
Que coisa, hein?” “Orwelliano, cara!”
Bem, sim e não. Previsões específicas são apenas detalhes, afinal. O que
talvez seja mais importante, necessário de fato, a um profeta em atividade, é
estar apto a enxergar mais fundo a alma humana do que a maioria de nós.
Em
1984, Orwell compreendeu que, apesar da derrota do Eixo,
a vontade de
fascismo não havia desaparecido; que, longe de ter conhecido seu fim, ela
talvez ainda não tivesse nem alcançado seu ápice: a corrupção do espírito e
a irresistível dependência humana do poder já estavam havia muito
estabelecidas — todos aspectos bem conhecidos do Terceiro Reich e da
URSS
de Stálin, e até mesmo do Partido Trabalhista Britânico — como os
primeiros esboços de um terrível futuro.
O que poderia impedir que o
mesmo acontecesse à Grã-Bretanha e aos Estados Unidos? Superioridade
moral? Boas intenções? Estilo de vida limpo?
O que progrediu de forma insidiosa e estável desde então, tornando os
argumentos humanistas quase irrelevantes, foi, é claro, a tecnologia. Não
devemos nos distrair muito com a qualidade tosca dos meios de vigilância
em voga na era de Winston Smith. Afinal, no “nosso” 1984 o chip de
circuito integrado tinha menos de dez anos de vida e era embaraçosamente
primitivo se comparado às maravilhas da tecnologia
de computadores por
volta de 2003, em especial à internet, uma criação que promete controle
social numa escala com que aqueles singulares tiranos do século xx com
seus bigodes engraçados nem sonhavam.
Por
outro lado, Orwell não previu progressos exóticos como as guerras
religiosas com as quais estamos tão familiarizados, envolvendo diversos
tipos de fundamentalismo. O fanatismo religioso está estranhamente
ausente da Oceânia, exceto na forma de devoção ao Partido. O regime do
Grande Irmão exibe todos os elementos do fascismo —
o ditador
carismático, o controle total do comportamento, a absoluta subordinação do
individual ao coletivo —, exceto a hostilidade racial e o antissemitismo em
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