Não será isso o que Orwell sugere ao mostrar Winston Smith entregue à
reflexão pessoal e Julia ao prazer privado? Qual é a fonte da rebelião dos
dois, senão a resistência “inata” do corpo e da mente de ambos às pressões
destrutivas da Oceânia? Está claro que não são mais inteligentes nem mais
sensíveis — e certamente não mais heroicos — do que inúmeros membros
do Partido Externo. E se suas necessidades, como seres humanos, levam
essas duas pessoas tão comuns à rebelião, não poderá acontecer o mesmo
com as outras?
Um problema correlato é o tratamento que Orwell dá aos operários da
Oceânia. Os proletas, até porque estão na base da pirâmide
e realizam
tarefas rotineiras, saem-se melhor do que os membros do Partido Externo:
têm mais privacidade, a teletela não lhes berra instruções nem observa cada
um de seus movimentos, e raramente são incomodados pela polícia secreta,
exceto para dar fim a algum trabalhador talentoso ou independente. É de se
presumir que Orwell justificaria esse tratamento dizendo que o Estado não
precisa mais temer os operários, uma vez que se tornaram tão
desmoralizados como indivíduos e tão impotentes como classe. Seria
arriscado negar que essa situação possa surgir no futuro e, de todo modo,
Orwell força deliberadamente as coisas a extremos dramáticos; mas caberia
também notar que ainda não aconteceu nada semelhante a isso, e nem os
nazistas nem os stalinistas jamais afrouxaram em qualquer grau
significativo o controle ou a vigilância sobre os trabalhadores. Aqui, Orwell
cometeu o erro de dar mais do que “um passo”,
e dessa forma rompeu o
vínculo entre o mundo que conhecemos e o mundo que ele imaginou.
Mas o tratamento que ele dá aos proletas pode ser questionado em
aspectos mais fundamentais. O Estado totalitário não pode permitir nenhum
luxo, nenhuma exceção; não pode tolerar a existência de nenhum grupo que
ultrapasse seu campo de controle; não pode nunca se sentir seguro a ponto
de resvalar para a indiferença. Vasculhando todos os cantos da sociedade
atrás de rebeldes que sabe não existirem, o Estado totalitário
nunca pode
descansar por muito tempo. Seria se arriscar à desintegração. Ele precisa
estar sempre criando uma situação de agitação, sacudindo e provocando os
membros, submetendo-os a testes contínuos, para assegurar seu poder. E
visto que, como Winston Smith conclui, os proletas continuam a ser uma
das poucas fontes possíveis
de revolta, não parece muito plausível que a
Oceânia lhes permitisse sequer a relativa liberdade que Orwell menciona.
Por fim, há a visão extremamente interessante, embora questionável, de
Orwell sobre a dinâmica de poder num Estado totalitário. Segundo seu
retrato da oligarquia partidária na Oceânia, ela é a primeira classe dirigente
dos tempos modernos a dispensar a ideologia. Não alega governar em prol
da humanidade, dos operários, da nação ou de qualquer outra coisa que não
ela mesma; rejeita como ingênua a lógica do Grande Inquisidor que oprime
os ignorantes para lhes conceder a salvação. O’Brien, o representante do
Núcleo do Partido, diz: “O Partido deseja
o poder exclusivamente em
benefício próprio. Não estamos interessados no bem dos outros; só nos
interessa o poder em si”. Os stalinistas e os nazistas, acrescenta, haviam se
aproximado dessa concepção do poder, mas apenas na Oceânia se abriu
mão de qualquer simulação de servir à humanidade — ou seja, de qualquer
ideologia.
As classes sociais têm pelo menos uma coisa em comum:
a sede de
poder. A burguesia queria o poder, não basicamente como fim em si mesmo
(por mais vaga que seja a expressão), mas a fim de expandir suas atividades
econômicas e sociais. Todavia, a classe dirigente da nova sociedade
totalitária, em especial na Rússia, é diferente das classes dirigentes da nossa
época: ela não pensa o poder político como meio para um fim não político,
como a burguesia fez em certa medida; ela considera o poder político como
seu fim essencial. Pois numa sociedade em que não existe propriedade
privada, a distinção entre poder político e poder econômico se torna
invisível.
Até aqui, aparentemente isso corroboraria a visão de Orwell.
Mas se a
classe dirigente do Estado totalitário não concebe o poder político como,
basicamente, um veículo para privilégios econômicos palpáveis, o que
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