The Ambassadors do que a de seu contemporâneo Dashing diamond Dick.
O problema não é o juízo de valor, mas é que quando um juízo de valor
se torna o fundamento de conceitos ele não determina apenas o que é
valorizado ou não, mas o que é pensável ou não, e, nesse caso, o que se
torna impensável é, primeiro, a maior parte de todo o território do ro‑
mance e, segundo, sua própria forma: porque a polarização desaparece
se você olhar apenas para um dos extremos, quando na verdade não
deveria, porque é a marca de como o romance participa da desigualda‑
de social, e a duplica, transformando‑a em desigualdade cultural. Uma
teoria do romance deveria levar isso em consideração. Mas, para tanto,
precisamos de um novo ponto de partida.
veblen “explica a cultura a partir do kitsch, e não o contrário”, es‑
creve Adorno em tom de desaprovação, em Prismas
5
. Mas é uma idéia
tão tentadora. Tomar o estilo de romances baratos como o objeto
básico de estudo e explicar o de Henry James como um improvável
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Franco Moretti
[6] Se eu tivesse que escolher um úni‑
co mecanismo… E se eu pudesse es‑
colher dois: aventuras — e amor. Um
mecanismo para expandir a história,
e um para mantê‑la unida: uma con‑
junção que é especialmente clara nos
romances antigos, nos quais o amor é
a única fonte de permanência em um
mundo onde tudo o mais é jogado aos
quatro ventos pela sorte, e age, por‑
tanto, como uma figura para os laços
sociais em geral: a união livremente
escolhida pela qual, em antítese às
aventuras despoticamente impostas
por Tuche, um organismo maior pode
ser vislumbrado. Mas esse equilíbrio
entre amor e aventura se rompe nos
romances de cavalaria, na medida
em que cavaleiros errantes passam
a procurar ativamente por aventuras
(a Busca), e novas figuras para o con‑
trato social emergem (a corte, a Távola
Redonda, o Santo Graal). Nessa nova
situação, o amor se torna funcional‑
mente subordinado à aventura — e o
tema do adultério, que surge imedia‑
tamente, é a um só tempo o sintoma
dessa força criadora de vínculos e
dessa nova posição problemática.
Essa redistribuição de tarefas narra‑
tivas, da qual o amor nunca se recu‑
perou completamente, é a razão pela
qual decidi enfocar exclusivamente
as aventuras; além disso, o amor
tem sido reconhecido pela teoria do
romance, há muito tempo (especial‑
mente na tradição inglesa), e eu queria
redirecionar nossa atenção para aquele
fenômeno histórico mais amplo.
produto marginal: é assim que uma teoria do romance deveria pro‑
ceder — porque é assim que a história procedeu. E não ao contrário.
Olhar para a prosa de baixo… Agora, com bases de dados digitais,
isso é fácil de imaginar: mais alguns anos e seremos capazes de fazer
buscas em praticamente todos os romances já publicados, e procurar
padrões entre bilhões de frases. Pessoalmente, sou fascinado por essa
confluência entre o formal e o quantitativo. Permitam‑me oferecer um
exemplo: todos os estudiosos da literatura analisam estruturas estilís‑
ticas — estilo livre indireto, o fluxo de consciência, excesso melodra‑
mático, e assim por diante. Mas é surpreendente quão pouco sabemos
de fato sobre a gênese dessas formas. Uma vez que se encontram ali,
sabemos o que fazer; mas como chegaram até lá, para começar? Como
o “pensamento confuso” (Michel vovelle) da mentalité, que é o subs‑
trato de quase tudo que acontece em uma cultura — como a confusão
se cristaliza na elegância do discurso indireto livre? Concretamente:
quais são os passos? Ninguém sabe ao certo. Ao esmiuçar diversas
variações, permutações e aproximações, uma estilística quantitativa
de arquivos digitais pode chegar a algumas respostas. Será difícil, sem
dúvida, porque não se pode estudar um arquivo enorme da mesma
maneira que se estuda um texto: textos são concebidos para “falarem”
conosco e, assim, se soubermos escutá‑los, sempre acabam por nos
dizer algo; mas arquivos não são mensagens, pensados para se diri‑
girem a nós, então não dizem absolutamente nada até que se faça a
pergunta certa. E o problema é que nós estudiosos literários não so‑
mos bons nisso: somos treinados a escutar, não a fazer perguntas, e
fazer perguntas é o contrário de ouvir: vira a crítica de ponta‑cabeça e
a transforma em uma espécie de experimento. “Questões dirigidas à
natureza” é como os experimentos são freqüentemente descritos, e o
que estou imaginando aqui são questões dirigidas à cultura. Difícil,
mas interessante demais para não tentar.
II
Tudo isso está no futuro. Meu segundo ponto está no passado.
Romances são longos; ou melhor, eles abarcam um espectro amplo
de tamanhos — das 20 mil palavras de Daphnis e Chloe às 40 mil de
Chrétien, 100 mil de Austen, 400 mil de Dom Quixote, e mais de 800
mil de The story of the stone — e um dia será interessante analisar as
conseqüências desse espectro, mas por ora aceitemos apenas a sim‑
ples noção de que são longos. A questão é “como chegaram a ser desse
jeito?”, e existem evidentemente diversas respostas mas, se eu tivesse
que escolher apenas um mecanismo, eu diria “aventuras”
6
. Aventuras
expandem os romances ao abri‑los para o mundo: há um pedido de
ajuda — e o cavaleiro parte. Normalmente sem fazer perguntas; e, o
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[7] O modernismo (isto é: a hoste de
experimentos centrífugos — Stein,
Kafka, Joyce, Pilniak, de Chirico, Pla‑
tonov… — arriscados nos anos pró‑
ximos à Primeira Guerra Mundial),
assim esperamos, desempenhará um
papel maior do que o realismo em
qualquer teoria do romance futura,
uma vez que um conjunto de extre‑
mos incompatíveis deveria ser capaz
de revelar algo único a respeito de o
que a forma pode — e não pode —
fazer. Até agora, no entanto, não tem
sido esse o caso.
[8] Köhler, E. “Il sistema sociologi‑
co del romanzo francese medieva‑
le”. Medioevo Romanzo, vol. 3, 1976,
pp. 321‑44.
que é típico da aventura, o desconhecido não é uma ameaça, é uma
oportunidade, ou mais precisamente: não existe mais a distinção entre
ameaças e oportunidades. “Quem abandona o caminho perigoso pelo
seguro”, diz Galessin, um dos cavaleiros da Távola Redonda, “não é
um cavaleiro, é um comerciante”: é verdade, o capital não gosta do
perigo pelo perigo, mas um cavaleiro sim. Ele é devedor. Ele não pode
armazenar glórias, deve renová‑las o tempo todo, portanto ele precisa
do moto‑perpétuo da aventura…
…perpétuo, especialmente se há uma fronteira à vista: do outro
lado da ponte, dentro da floresta, montanha acima, através do portão,
no mar. As aventuras criam romances porque os amplificam; são os
grandes exploradores do mundo da ficção: campos de batalha, ocea‑
nos, castelos, caminhos subterrâneos, pradarias, ilhas, cortiços, selvas,
galáxias… Praticamente todos os grandes cronótopos populares sur‑
giram quando as tramas de aventura se mudaram para novas geogra‑
fias, e ativaram seu potencial narrativo. Assim como a prosa multiplica
estilos, a aventura multiplica histórias: e a prosa prospectiva é perfeita
para a aventura, sintaxe e trama movendo‑se em conjunto. Não estou
certo de que exista um ramo principal na família de formas a que cha‑
mamos romance, mas se há, é esta: seríamos capazes de reconhecer a
história do romance sem o modernismo ou mesmo sem o realismo
7
;
sem aventuras em prosa, não.
Aqui, também, o campo do romance é profundamente polarizado
entre aventuras e vida cotidiana; e aqui, também, a teoria do romance
mostrou muito pouco interesse (com exceção de Bakhtin, e agora de
Pavel) pelo lado popular do campo. Mas não quero reiterar esse aspec‑
to do argumento; em vez disso vou me voltar à curiosa estreiteza que
— apesar de toda sua plasticidade — parece ser típica de aventuras.
Uma estreiteza social, fundamentalmente. A idéia toda foi “invenção
da pequena nobreza de cavaleiros sem vintém”, para quem aventure era
uma forma de sobreviver — e, possivelmente, casar com uma herdeira,
como diz Erich Köhler, que foi o grande sociólogo dessa convenção
8
.
Mas se os cavaleiros necessitam de aventuras, para outras classes so‑
ciais a noção permaneceu opaca. “Eu sou, como podes ver, um cavalei‑
ro à busca daquilo que não posso encontrar”, diz Calogrenante a um
camponês no início de Yvain: “E o que você quer encontrar?”. “Aven‑
tura, para testar minha coragem e minha força. Agora rogo e imploro
que me sugiras, se sabes, de alguma aventura ou maravilha”. “Nada
sei de aventura, e dela nunca ouvi falar” (ii, 356‑67). Que resposta;
apenas poucos anos antes, na chanson de geste, a natureza da ação cava‑
leiresca era clara para todo mundo; não mais nesse momento. O ethos
cavaleiresco tornou‑se “absoluto tanto com referência a seu aperfeiçoa‑
mento ideal, como também em realção à falta de finalidades terrenas e
práticas”, escreve Auerbach em Mimesis: “nenhuma função política…
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Franco Moretti
[9] Auerbach, Erich. Mimesis. São
Paulo: Perspectiva, 1998, pp. 116‑17.
A respeito, conferir também Köhler,
Erich. “Quelques observations de
ordre historico‑sociologique sur les
rapports entre la chanson de geste e
le roman courtois”. Chanson de geste
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