CACHORRA DA PALMEIRA
Que o padre Cícero espalha bênçãos por todo o Nordeste, é sabido de todos.
Mas, com o em todas as coisas sagradas, há nele, tam bém , um lado perigoso,
com o qual não convém m exer.
Ora, certa feita um a j ovem resolveu brincar com ele e acabou m al.
A coisa se deu algum as sem anas depois do passam ento do santo padre do
sertão. Um a j ovem acabara de ver m orrer sua cachorrinha e andava m uito
chateada quando um a velha beata, ainda inconsolável com a m orte do seu
m entor espiritual, travou um a conversa com ela. A senhora estava traj ando luto
e, questionada pela j ovem da razão daquilo, disse, m uito indignada:
– Ora, por quê! Estou de luto pela m orte do m eu Padre Cícero Rom ão
Batista!
Então a j ovem , m eio debicando, retrucou:
– Pois deveria botar luto era pela m inha cachorrinha!
Dizem que, no m esm o instante, a pobre criatura virou cadela e saiu, feito
doida, a correr pelo sertão.
Dizem alguns estudiosos que seu irm ão conseguiu capturá-la e que até hoj e
ela vive enj aulada. Presa noite e dia, passa o tem po latindo e uivando, sem
com er nada feito em panela (sabe-se lá a razão), m as som ente carne de cabrito
novo, isto quando não rói os próprios ossos.
Esta assom bração é coisa relativam ente recente nos anais do nosso
folclore: data de 1934 e tem se m antido com razoável saúde na crônica
assom brosa do Nordeste, a j ulgar-se pelo núm ero de poem as de cordel que
circulam sobre o tem a, em todas as feiras nordestinas.
A Cachorra da Palm eira é um m ito que versa, ao m esm o tem po, sobre o
tabu religioso e o preconceito m oral, j á que a cadela rem ete, especialm ente nos
sertões nordestinos, à prostituta.
CAIPORA
Para m uitos estudiosos, o Caipora (ou Caapora) é um a sim ples derivação
do Curupira. Pertencente à m esm a classe dos entes protetores da floresta – m ais
exatam ente, da caça –, ele desenvolveu, contudo, um tipo próprio bastante
diferenciado do Curupira: enquanto este se apresenta com o um m oleque franzino
e de pés invertidos, o Caipora tom a a figura de um brutam ontes com o corpo
coberto de pelos e m ontado num gigantesco porco-do-m ato. (No Nordeste,
porém , o Caipora tem o aspecto de um indiozinho perneta, havendo aqui um a
curiosa fusão do Saci e do Curupira.)
Caapora, em tupi, significa “habitante do m ato”, denom inação fiel deste
ser que, nos prim órdios da colonização portuguesa, foi ignorado pelos j esuítas, tão
hábeis em recensear os m il disfarces de que se valeu o Diabo para introduzir-se
nas m atas brasileiras. O m áxim o que, naqueles dias, se pôde evocar dele foi um a
espécie de espectro silvestre e sem form a, sem nada que lem bre a
espetaculosidade de hom ens peludos cavalgando j avalis ou porcos gigantes.
Em algum as regiões, o Caipora troca de sexo, e passa a ser “a” Caipora,
um a m ulher, tam bém protetora da caça, m as que não se furta a entrar em
intim idades com os caçadores, chegando a praticar sexo livrem ente com eles.
Depois que o rom ance engata, porém , ela se torna cium enta e possessiva, capaz
de punir a m enor traição com um a surra letal de cipó espinhento.
Assim com o o seu confrade m asculino, a Caipora tem o hábito de cavalgar
porcos e ressuscitar a caça abatida. (Conta-se que, certa feita, um grupo de
caçadores estava assando um tatu na m ata quando a Caipora, passando de
repente, m ontada num porco, deu o grito: “Vam bora, João!”, e o tatu, tostado e
sem vísceras, pulou agilm ente do espeto e saiu-lhe no encalço, vivinho da silva.)
Apesar de o Curupira ser popular no Rio Grande do Sul, nem por isso o
escritor gaúcho Sim ões Lopes Neto deixou de m encionar, tam bém , o “hom em
agigantado”, dando-nos o conhecim ento de que a versão expandida do Curupira,
após percorrer todo o Brasil, chegou a alcançar o extrem o sul.
A expressão “caipora” com o sinônim o de azarado provém deste
personagem . Dizia-se antigam ente de todo caçador infeliz na caça que ele
“estava com o Caipora”, e que todo aquele que se encontrava com o ser
m onstruoso estava votado, a partir de então, a fracassar em toda coisa que
intentasse.
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