OS POTES DA NOITE
Dizem os índios tem bés que outrora o céu não era tão alto com o agora, e
que um dia os passarinhos e todas as aves do céu, querendo m ais espaço para as
suas acrobacias, convocaram um a reunião para pôr o assunto em votação. Esse
encontro foi quase tão concorrido quanto a fam osa Assem bleia dos Pássaros,
ocorrida lá para as bandas do Oriente, e tinha ave de todos os j eitos, até m esm o
criaturas que de aves só tinham as asas, tal com o o m orcego.
Aliás, o m orcego foi o único ser provido de asas que repudiou a ideia de
suspender o telhado do céu.
– O céu j á não está alto o bastante? – disse ele.
Mas as aves não queriam saber de céu baixo e aprovaram por esm agadora
m aioria a elevação da abóbada dos céus.
Foi um a trabalheira im ensa, m as as aves conseguiram , afinal, erguer o
grande telhado azul de tal m odo que, a partir dali, sobrou espaço para as piruetas
aladas de todos os seres am igos do ar. O m orcego, porém , foi punido por sua
casm urrice, e desde então passou a dorm ir de ponta-cabeça.
– De hoj e em diante, dorm irá com o céu debaixo dos pés! – disse a coruj a,
ao decretar a sentença.
Mas, se os pássaros estavam felizes com a suspensão do céu, os índios
continuavam desgostosos com as coisas do alto. O céu fora suspenso, m as e daí?
Nem por isso a claridade dim inuíra, j á que não havia noite, ainda, em parte
algum a do universo. Os tem bés não aguentavam m ais dorm ir com luz no rosto, e
era preciso fazer algum a coisa para terem , pela prim eira vez, um a noite de
descanso real.
Até que um dia um velho índio, chegado dos fundos da m ata, trouxe um a
grande novidade.
– Acabei de descobrir o local onde o m au espírito Azã esconde seus dois
grandes potes!
Aquilo parecia história de um velho m aluco, m as, m esm o assim , o cacique
decidiu tirar a dúvida.
– Está falando dos potes que guardam a noite? – disse ele.
– Sim , sim , eles m esm os! – bradou o velhote, sapateando os pés nus sobre o
pó.
No m esm o instante, o cacique organizou um a expedição à m ata para
arrebatar os dois potes. Eles eram negros com o a noite que escondiam e estavam
m etidos entre os j oelhos do velho dem ônio, que nunca dorm ia. Quanto m ais se
aproxim avam , m ais escutavam o ruído que havia dentro dos potes. É que dentro
estavam guardados, além da noite, todos os seres esparrentos que a povoam , tais
com o os grilos, os sapos e toda a fauna gritona das trevas.
– Tirar os potes do m eio das pernas do dem ônio j á se vê que não dá – disse
o cacique.
Então, cham ando seu arqueiro m ais hábil, ordenou-lhe baixinho:
– Vare aqueles dois potes com um a única flechada.
O arqueiro rastej ou no m usgo até encontrar a posição ideal. Quando teve a
certeza de poder espatifar os dois cântaros com um a única flechada, ele
abandonou a posição de cobra rastej ante e ficou de j oelhos; depois, alçou o arco
e caprichou bem na m ira para só então disparar a seta. Um zum de vento cruzou
a m ata e passou por entre as pernas do dem ônio, espatifando um dos vasos (o
outro, Azã conseguiu proteger, pois enganava-se quem pensava que ele dorm ia).
De qualquer j eito, um dos potes se espatifara, e seus cacos saltaram na cara do
dem ônio, deixando-o m om entaneam ente cego.
Com a explosão do prim eiro pote, um j ato veloz de trevas j orrou para fora
e, depois de engolir o dem ônio e se espalhar por tudo, continuou avançando por
toda a selva. Junto com a treva, vinham os habitantes da noite – onças, aranhas,
cobras, m orcegos, m osquitos e predadores de toda espécie, que se aproveitam da
escuridão para espalhar o seu reinado de terror e de sangue.
Ao verem aquilo tudo crescer para cim a deles, os índios largaram a correr
com quantas pernas tinham , pois a noite se revelara pior, afinal, do que o dia sem
fim . Eles só pararam quando chegaram à sua aldeia. Quase j unto com eles
chegou a noite, e então eles desabaram , exaustos, sobre o chão, pois não havia
quem pudesse resistir àquela gostosa escuridão para tirar um bom ronco. Quando
estavam , porém , no bom do sono, a barra do dia com eçou a erguer-se outra vez,
e um raio de sol feriu o olho do cacique.
– Danação! Que noite m ais curta é esta?
De fato, a noite fora m uito curta. Então, ele percebeu que teria de quebrar
tam bém o segundo pote, que ainda restara inteiro na selva.
O arqueiro, pressentindo o cham ado, apresentou-se, solícito.
– Você não! – disse o m orubixaba, expulsando o arqueiro faj uto.
Então m andou cham ar o urutau, um dos aj udantes de sua predileção.
(Naquele dias, o urutau era ainda um índio, com o todos os outros.)
– Vá você até a m ata e quebre o segundo pote!
Urutau tom ou do arco e se foi, em bora pressentisse coisa ruim . Ao chegar
perto de Azã, viu que ele ainda esfregava os olhos m agoados e aproveitou para
arrem essar a sua seta sobre o pote.
Resultado: o vaso rachou inteiro, e nova onda de trevas se espalhou por
tudo.
Assustado, o índio-urutau abriu o com passo das pernas e com eçou a correr
com toda a energia, m as acabou enredando os pés num em aranhado de cipós,
indo dar de cara na relva. Então, antes que pudesse erguer-se, a treva finalm ente
alcançou-o. O índio deu um grito e cobriu a cabeça com os braços. Quando
destapou-se, porém , foi com um par de asas que o fez. Tam bém um bico
enorm e havia crescido no lugar da boca, e um par de olhos am arelos e
arregalados dava agora à sua cara um ar perm anente de espanto.
E foi desde este dia que o urutau deixou de ser um índio para converter-se
na ave noturna que hoj e se conhece. De noite, o urutau grita, e durante o dia não
faz outra coisa senão estar em poleirado num galho e acom panhar, de olhos
arregalados, a m archa do sol pelos céus.
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