[1] Apesar de indicar as páginas da
versão do livro publicada em portu-
guês pela Martins Fontes, nesta rese-
nha usarei a minha própria tradução
direta, livre, da versão original em
inglês, pois entendo que representa
com maior fidelidade as idéias ex-
pressas nas passagens citadas.
❙❙ CRÍTICA 243
A conhecida fábula de Esopo mostra uma formiga trabalhando
arduamente durante o verão enquanto a cigarra canta.Chega o rigoroso
inverno e a formiga tem mantimentos suficientes para seu sustento,
enquanto a cigarra passa fome.Na versão original,a fábula termina com
a lição moral de que “é melhor se preparar para os dias de necessidade”,
mas na filosofia política anglo-americana contemporânea ela tem sido
usada de forma recorrente como uma alegoria do problema da justiça
distributiva. A igualdade absoluta na distribuição das riquezas sociais
relevaria a responsabilidadeque as pessoas devem assumir pelas escolhas
que fazem entre,por exemplo,o lazer e o trabalho.Portanto,em muitos
casos,ela implicaria a transferência intuitivamente injusta de recursos
da formiga trabalhadora para a indolente cigarra.
Essa concepção estrita do conceito de igualdade distributiva,
defendida segundo o jurista e filósofo norte-americano Ronald
Dworkin pela “velha esquerda”,desacreditou esse ideal mesmo entre
os que se classificam como “à esquerda do centro” no contexto polí-
tico britânico e norte-americano. Como ele declara já na primeira
frase da introdução de A virtude soberana — A teoria e a prática da igual-
dade,“a igualdade [distributiva] é espécie ameaçada de extinção entre
os ideais políticos” (p. IX)
1
.
Dworkin pretende resgatar o ideal da igualdade distributiva
demonstrando que,propriamente interpretado,ele não leva às conse-
qüências injustas que a fábula de Esopo parece ilustrar.Para isso,parte
da premissa de que a igualdade distributiva é na verdade a concretiza-
ção no campo econômico de um ideal mais abstrato da igualdade que
nenhum governo legítimo pode negar:a igualdade de consideração.
Nenhum governo é legitimo que não demonstre igualdade de conside-
ração pelo destino de todos os cidadãos sobre os quais pleiteia domínio e
CRÍTICA
JUSTIÇA DISTRIBUTIVA
PARA FORMIGAS E CIGARRAS
Octávio Luiz Motta Ferraz
A VIRTUDE SOBERANA — A TEORIA E A PRÁTICA DA IGUALDADE,
de Ronald Dworkin. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
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[2] Dworkin, Ronald. Taking rights
seriously. Londres: Duckworth, 1977,
p.227.
dos quais demanda fidelidade. A igualdade de consideração é a virtude
soberana das comunidades políticas — sem ela o governo não passa de
tirania […] (p. IX)
Em Taking rights seriously, publicado em 1977, Dworkin lembrava
que o ideal abstrato da igualdade não implica necessariamente trata-
mento idêntico em todas as situações,mas sim o direito de ser tratado
como um igual (“
as an equal”),ou seja,com o mesmo respeito e conside-
ração que todos os demais
2
. Desse modo, ninguém poderia propor
seriamente como interpretação legítima do ideal da igualdade no
campo econômico que o governo “constantemente tirasse das formi-
gas para dar às cigarras” (p.X).
Contudo, se a igualdade distributiva estrita não é uma interpreta-
ção plausível do ideal abstrato da igualdade de consideração, tam-
pouco o é o argumento neoliberal de que o mercado é mecanismo justo
para a distribuição de riquezas.O que exatamente a igualdade de con-
sideração e respeito requer no campo econômico é controverso, mas
quando a distribuição das riquezas de uma nação é muito desigual,
como acontece hoje mesmo nos países muito prósperos, a igualdade
de consideração é suspeita, segundo Dworkin (p. IX). Como a distri-
buição de riquezas em uma sociedade é produto de uma ordem jurí-
dica, “devemos estar preparados a explicar, para aqueles que sofreram
as perdas,porque foram não obstante tratados com a igual considera-
ção a que têm direito” (p.X).
Em A virtude soberana,Dworkin apresenta e defende a sua concepção
de igualdade e as implicações práticas dessa concepção em diversos
campos,como por exemplo a ação afirmativa nas universidades ameri-
canas (capítulos 11 e 12), os direitos dos homossexuais e a questão da
eutanásia (capítulo 14), a igualdade política (capítulo 5). A justiça dis-
tributiva,porém,é a que recebe maior atenção (capítulos 1,2,3,7,8 e 9)
e essa será a questão que enfocarei no espaço limitado desta resenha.
O IGUALITARISMO LIBERAL
Dworkin é considerado um dos expoentes, senão o principal, de
uma corrente de pensamento da filosofia política anglo-americana
geralmente denominada igualitarismo liberal. Ao contrário do igualita-
rismo por assim dizer radical,essa corrente aceita a premissa liberal de
que a distribuição das riquezas sociais deve expressar de algum modo
as escolhas das pessoas e que, portanto, uma distribuição idêntica de
riquezas não é necessariamente uma distribuição justa ou igualitária.
Em direção oposta, porém, deve-se concluir que as desigualdades
materiais que não podem ser atribuídas às escolhasdas pessoas,ou seja,
as que se devem a circunstâncias fora de seu controle, não são justifica-
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❙❙ CRÍTICA
[3] Cohen, G. A. “On the currency of
egalitarian justice”, Ethics. University
of Chicago Press,n.99,jul.1989,p.933.
das.Trata-se da aplicação,no campo da justiça distributiva,do princí-
pio ético bem estabelecido da responsabilidade.
Ele desenvolve essa idéia de forma clara na seguinte passagem do
livro: